A Geografia Sagrada do Candomblé: Recriando a África em Território Brasileiro
Bem-vindo! Este blog funciona como um acervo pessoal, onde reúno tudo que me interessa na internet. É o meu espaço para organizar e não perder de vista as coisas que curto. Se algum dos assuntos por aqui chamou sua atenção, é provável que tenhamos afinidades. Fique à vontade para sugerir novas ideias e conteúdos!
TRATADO DA CORREÇÃO DO INTELECTO
[1] Desde que a
experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida
cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me receava ou que temia
não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava
abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem
verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o
mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, achado e
adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema.
[2] Digo que
resolvi enfim porque à primeira vista parecia insensato querer deixar uma coisa
certa por outra então incerta. De fato, via as comodidades que se adquirem pela
honra e pelas riquezas, e que precisava abster-me de procurá-las, se
tencionasse empenhar-me seriamente nessa nova pesquisa. Verificava, assim, que
se, por acaso, a suprema felicidade consistisse naquelas coisas, iria privar-me
delas; se, porém, nelas não se encontrasse e só a elas me dedicasse, também
careceria da mesma felicidade.
[3] Ponderava, portanto, interiormente se não
seria possível chegar ao novo modo de vida, ou pelo menos à certeza a seu
respeito, sem mudar a ordem e a conduta comum de minha existência, o que tentei
muitas vezes, mas em vão. Com efeito, as coisas que ocorrem mais na vida e são
tidas pelos homens como o supremo bem resumem-se, ao que se pode depreender de
suas obras, nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência. Por
elas a mente se vê tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer
outro bem.
[4] Realmente,
no que tange à concupiscência, o espírito fica por ela de tal maneira possuído
como se repousasse num bem, tornando-se de todo impossibilitado de pensar em
outra coisa; mas, após a sua fruição, segue-se a maior das tristezas, a qual,
se não suspende a mente, pelo menos a perturba e a embota. Também procurando as
honras e a riqueza, não pouco a mente se distrai, mormente quando são buscadas
apenas por si mesmas, porque então serão tidas como o sumo bem.
[5] Pela honra,
porém, muito mais ainda fica distraída a mente, pois sempre se supõe ser um bem
por si e como que o fim último, ao qual tudo se dirige. Além do mais, nestas
últimas coisas não aparece, como na concupiscência, o arrependimento. Pelo
contrário, quanto mais qualquer delas se possuir, mais aumentará a alegria e
consequentemente sempre mais somos incitados a aumentá-las. Se, porém, nos
virmos frustrados alguma vez nessa esperança, surge uma extrema tristeza. Por
último, a honra representa um grande impedimento pelo fato de precisarmos, para
consegui-la, adaptar a nossa vida à opinião dos outros, a saber, fugindo do que
os homens em geral fogem e buscando o que vulgarmente procuram.
[6] Como, pois,
visse que tudo isso obstava a que me dedicasse ao novo modo de vida, e, mais
ainda, tanto se lhe opunha que eu devia necessariamente abster-me de uma coisa
ou de outra, achava-me forçado a perguntar o que me seria mais útil; porque,
como disse, parecia-me querer deixar um bem certo por um incerto. Mas, depois
de me haver dedicado um tanto a esse ponto, achei em primeiro lugar que se,
abandonando tudo, me entregasse ao novo empreendimento, deixaria um bem por sua
natureza incerto, como se depreende claramente do que foi dito, por um também
incerto, ainda que não por sua natureza (pois buscava um bem fixo), mas apenas
quanto à sua obtenção.
[7] Entretanto,
mediante uma assídua meditação, cheguei a verificar que então, se pudesse
deliberar profundamente, deixaria males certos por um bem certo. Via-me, com
efeito, correr um gravíssimo perigo e obrigar-me a buscar com todas as forças
um remédio, embora incerto; como um doente que sofre de uma enfermidade letal,
prevendo a morte certa se não empregar determinado remédio, sente-se na
contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as forças, pois que
nele está sua única esperança. Em verdade, tudo aquilo que o vulgo segue não só
não traz nenhum remédio para a conservação de nosso ser mas até o impede e
frequentemente é causa de morte para aqueles que o possuem e sempre causa de
perecimento para os que são possuídos por isso.
[8] Existem, de
fato, muitos exemplos dos que, por causa de suas riquezas, sofreram a
perseguição até a morte, e também daqueles que, para juntar tesouros, se
expuseram a tantos perigos que afinal pagaram com a vida a pena de sua tolice.
Nem menos numerosos são os exemplos dos que, para conseguir a honra ou
defendê-la, muitíssimo sofreram. Por último, há inúmeros exemplos dos que
aceleraram a sua morte pelo excesso de concupiscência.
[9] Esses males
pareciam provir de que toda a felicidade ou infelicidade consiste somente numa
coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos pelo amor. Com efeito,
nunca nascem brigas pelo que não se ama, nem haverá tristeza se perece, nem
inveja se é possuído por outro, nem temor nem ódio e, para dizer tudo em uma só
palavra, nenhuma emoção da alma; coisas que acontecem no amor do que pode
perecer, como tudo isso de que acabamos de falar.
[10] Mas o amor
de uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, sem qualquer
tristeza, o que se deve desejar bastante e procurar com todas as forças.
Entretanto, não é sem razão que usei destes termos: se pudesse seriamente
deliberar. Porque, ainda que percebesse mentalmente essas coisas com
bastante clareza, nem por isso podia desfazer-me de toda avareza,
concupiscência e glória.
[11] Apenas via
que, enquanto a mente se ocupava com esses pensamentos, afastava-se daqueles e
refletia seriamente no novo empreendimento, o que me servia de grande consolo,
pois percebia que aqueles males não eram de tal espécie que não cedessem aos
remédios. E embora no começo esses intervalos fossem raros e durassem por muito
tempo, tornavam-se mais frequentes e mais longos depois que o verdadeiro bem
mais e mais me ficou sendo conhecido; principalmente depois que vi a aquisição
de dinheiro ou a concupiscência e a glória só prejudicarem enquanto são
procuradas por si e não como meios para as outras coisas; se, porém, são
buscadas como meios, terão então uma medida e não prejudicarão de modo algum,
até, pelo contrário, muito contribuirão para o fim pelo qual são procuradas,
como mostraremos no devido lugar.
[12] Aqui só
direi breves palavras sobre o que entendo por verdadeiro bem e, juntamente, o
que é o sumo bem. Para compreender isso corretamente, note-se que o bem e o mal
não se dizem senão relativamente, de maneira que uma mesma coisa pode ser
chamada boa ou má conforme as diversas relações, assim como se dá com perfeito
ou imperfeito. Nada, com efeito, considerado em sua natureza, será dito
perfeito ou imperfeito; principalmente depois de sabermos que tudo o que é
feito acontece segundo uma ordem eterna e conforme leis certas da Natureza.
[13] Como, porém,
a fraqueza humana não alcança aquela ordem pelo seu conhecimento, e,
entretanto, o homem concebe alguma natureza humana muito mais firme que a sua,
vendo, ao mesmo tempo, que nada obsta a que adquira tal natureza, sente-se
incitado a procurar os meios que o conduzam a tal perfeição: e tudo o que pode
ser meio para chegar a isso chama-se verdadeiro bem. O sumo bem, contudo, é
chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, se possível, dessa natureza.
Qual, porém, seja ela mostraremos em seu lugar, a saber, o conhecimento da
união que a mente tem com toda a Natureza.
[14] Este é,
portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma natureza assim e esforçar-me por
que muitos a adquiram comigo; isto é, pertence também à minha felicidade fazer
com que muitos outros entendam o mesmo que eu, a fim de que o intelecto deles e
seu apetite convenham totalmente com o meu intelecto e o meu apetite. E para
que isso aconteça, é preciso entender tanto da Natureza quanto baste para
adquirir semelhante natureza; a seguir, formar tal sociedade como é desejável
para que o maior número chegue a isso do modo mais fácil e seguro.
[15] Cumpre, além
disso, dedicar-nos à Filosofia Moral, bem como à Doutrina da Educação
dos meninos; e porque a saúde não deixa de ser um meio importante para
conseguir esse fim, é mister estudar todas as partes da Medicina; e,
ainda, como pela arte se tornam fáceis muitas coisas que são difíceis, podendo
nós por ela ganhar muito tempo e muita comodidade da vida, não se deve
desprezar de modo algum a Mecânica.
[16] Antes de
tudo, porém, deve excogitar-se o modo de curar o intelecto e purificá-lo quanto
possível desde o começo, a fim de que entenda tudo felizmente sem erro e da
melhor maneira. Donde se poderá já deduzir que quero encaminhar todas as
ciências para um só fim e escopo, a saber, chegar à suma perfeição humana de
que falamos; e assim tudo o que nas ciências não nos leva a nosso fim precisa
ser rejeitado como inútil; isto é, para usar uma só palavra, todas as nossas
ações, assim como os pensamentos, hão de ser dirigidos para esse fim.
[17] Mas visto
que é necessário viver enquanto cuidamos de o conseguir e nos esforçamos por
colocar o intelecto no caminho reto, somos obrigados antes de tudo a supor como
boas algumas regras de vida, a saber: I. Falar ao alcance do vulgo e
fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para atingirmos o nosso escopo.
Com efeito, disso podemos tirar não pequeno proveito, contanto que nos
adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade; acresce que desse modo
oferecerão ouvidos prontos para a verdade. II. Dos prazeres somente gozar
quanto basta para a consecução da saúde. III. Por último, procurar o
dinheiro ou outra coisa qualquer só enquanto chega para o sustento da vida
e da saúde, imitando os costumes da sociedade que não se opõem a nosso fim.
[18] Posto isso,
dedicar-me-ei à primeira coisa que se deve fazer, ou seja, corrigir o
intelecto, tornando-o apto a compreender as coisas do modo que é preciso a
fim de conseguir o nosso intento. Para tanto, exige a ordem, que naturalmente
temos, que aqui resuma todos os modos de perceber usados por mim até agora para
afirmar ou negar alguma coisa sem dúvida, com o intuito de escolher o melhor de
todos e começar ao mesmo tempo a conhecer as minhas forças e a minha natureza,
a qual desejo aperfeiçoar.
[19] Se olho com
cuidado, podem reduzir-se todos a quatro principais. I. Existe uma
percepção que temos por ouvir ou outro qualquer sinal que chamam “convencional”
(ad placitum: arbitrário). II. Existe uma percepção originária da
experiência vaga, isto é, da experiência não determinada pelo intelecto, só
se dizendo tal porque ocorre por acaso e não vemos nenhuma outra experiência
que a contradiga, e por isso fica como irrecusável entre nós. III. Existe
uma percepção na qual a essência de uma coisa é tirada de outra, mas não
adequadamente, o que acontece quando induzimos de algum efeito a causa ou
quando se conclui de um universal que sempre é acompanhado de certa
propriedade. IV. Por último, existe uma percepção em que a coisa é percebida
por sua essência unicamente ou por sua causa próxima.
[20] Esclarecerei
tudo isso com exemplos. Pelo ouvido tão somente, conheço o meu natalício, sei
que tive tais progenitores e coisas semelhantes, de que nunca duvidei. Pela
experiência vaga, sei que hei de morrer: afirmo-o porquê vi que os outros,
iguais a mim, morreram, ainda que nem todos vivessem o mesmo lapso de tempo,
nem sucumbissem pela mesma doença. Também pela experiência vaga, sei que o óleo
é próprio para alimentar a chama e que a água serve para extingui-la; sei
igualmente que um cão é um animal que ladra, o homem um animal racional, e
assim quase tudo que se refere ao uso da vida.
[21] De outra
coisa, porém, concluímos da seguinte maneira: depois de percebermos claramente
que sentimos este corpo e nenhum outro, daí, digo, concluímos com clareza que a
alma está unida ao corpo, união que é a causa de semelhante sensação, mas não
podemos em absoluto inteligir qual seja essa sensação e união. Ou depois que
conheci a natureza da vista e ao mesmo tempo ter ela a propriedade de fazer com
que uma coisa enxergada de longe lhe pareça menor do que de perto, concluímos
que o sol é maior do que parece e outros fatos semelhantes.
[22] Por último,
a coisa é percebida unicamente por sua essência quando, por saber algo, sei o
que é saber alguma coisa, ou, por conhecer a essência da alma, sei que ela está
unida ao corpo. Pelo mesmo conhecimento, sei que dois e três são cinco, e,
dadas duas linhas paralelas a uma terceira, são também paralelas entre si. O
que, porém, pude inteligir até agora com esse conhecimento, foi muito pouco.
[23] Mas, para
que se entenda tudo isso melhor, usarei de um só exemplo, que é o seguinte:
dados três números, pergunta-se qual o quarto que está para o terceiro como o
segundo para o primeiro. Dizem comumente os negociantes saber como descobrir
esse quarto número, porque, sem dúvida, ainda não esqueceram a operação que
aprenderam de seus mestres “despida”, isto é, sem demonstração. Outros,
contudo, pela experiência dos casos simples, fazem um axioma universal, ou
seja, quando é patente por si o quarto número, como em 2, 4, 3, 6, pois
experimentam que, multiplicando-se o segundo pelo terceiro e dividindo-se o
produto pelo primeiro, obtêm-se o quociente 6; e como veem que se chega ao
mesmo número que sabiam ser proporcional sem essa operação, concluem que se
trata de uma operação sempre boa para descobrir o quarto número.
[24] Entretanto,
os matemáticos sabem, em virtude da demonstração de Euclides, quais são os
números proporcionais entre si, ou seja, pela natureza da proporção e sua
propriedade, sabendo que o número que se obtém pela multiplicação do primeiro e
quarto é igual ao produto do segundo pelo terceiro; contudo, não veem a
proporção adequada dos números dados, e, se veem, não é por força daquela
proposição, mas intuitivamente, não fazendo nenhuma operação.
[25] Ora, para
escolher entre esses o melhor modo de perceber, requer-se que enumeremos
brevemente quais os meios necessários para conseguir o nosso fim, a saber: I.
Conhecer exatamente a nossa natureza, que desejamos aperfeiçoar, e, ao
mesmo tempo, saber da natureza das coisas tanto quanto for necessário. II.
Daí deduzir corretamente as diferenças, concordâncias e oposições das coisas.
III. Conceber corretamente o que podem sofrer ou não. IV. Conferir
isso com a natureza e a potência do homem. Assim, aparecerá facilmente a
suma perfeição a que o homem pode chegar.
[26] Feitas essas considerações, vejamos o modo
de perceber que devemos adotar. No que tange ao primeiro, vê-se logo que pelo
ouvido (além de ser uma coisa muito incerta) não se percebe nenhuma essência da
coisa, como se evidencia por nosso exemplo, e, visto que não se sabe da
existência singular de algo a não ser conhecida a sua essência, ao que se verá
mais tarde, claramente se conclui que toda a certeza que temos pelo ouvido se
deve excluir das ciências. Com efeito, pelo simples ouvir dizer, não vindo antes
a própria intelecção, nunca poderá alguém ser afetado.
[27] Quanto ao
segundo, também não se deve dizer que alguém tenha a ideia da proporção que
procura. Além de ser uma coisa bastante incerta e sem fim, dessa maneira não se
perceberá jamais, nas coisas naturais, outra coisa senão os acidentes, os quais
nunca são claramente entendidos sem o conhecimento anterior das essências. Por
isso, há de se excluir também esse modo.
[28] Do terceiro,
diga-se que, de certa maneira, temos a ideia da coisa e também que concluímos
sem perigo de erro; mas não será por si um meio para adquirirmos a nossa
perfeição.
[29] Só o quarto
modo compreende a essência adequada da coisa e sem perigo de errar; por
isso é que devemos usá-lo ao máximo. Como, porém, há de empregar-se para que as
coisas desconhecidas sejam entendidas por nós com tal conhecimento, e ao mesmo
tempo, para que isso se faça do modo mais resumido, eis o que cuidaremos de
explicar.
[30] Depois de
sabermos que conhecimento nos é necessário, cumpre-nos versar sobre o caminho e
o método pelo qual conheceremos as coisas a conhecer dessa forma. Para isso,
deve-se primeiramente considerar que não haverá aqui uma investigação sem fim;
a saber, para se descobrir qual o melhor método de investigar a verdade, não é
necessário outro método para investigar qual o método de investigar a verdade;
e para que se investigue este segundo método, não é necessário um terceiro, e
assim ao infinito: por esse modo nunca se chegaria ao conhecimento da verdade,
ou, antes, a conhecimento algum. O mesmo se diria dos instrumentos materiais,
onde se argumentaria de igual forma, pois para forjar o ferro precisar-se-ia de
um martelo e, para se ter martelo, é preciso fazê-lo, para o que se necessita
de outro martelo e de outros instrumentos, os quais também supõem outros
instrumentos, e assim ao infinito; e desse modo em vão tentaria alguém provar
que os homens nenhum poder têm de forjar o ferro.
[31] Mas como os
homens no começo, com instrumentos inatos, puderam fabricar algumas
coisas muito fáceis, ainda que laboriosa e imperfeitamente, feito o que,
fabricaram outras coisas mais difíceis, com menos trabalho e mais perfeição,
passando assim gradativamente das obras mais simples aos instrumentos e destes
a outras obras e instrumentos, para chegar a fazer tantas coisas e tão difíceis
com pouco trabalho, também o intelecto, por sua força nativa, faz para si
instrumentos intelectuais e por meio deles adquire outras forças para
outras obras intelectuais, graças às quais fabrica outros instrumentos ou poder
de continuar investigando, e assim prosseguindo gradativamente até atingir o
cume da sabedoria.
[32] Que isso
ocorre com o intelecto é fácil de ver, contanto que se entenda o que é o método
de investigar a verdade e quais são os instrumentos inatos de que apenas
necessita para fazer outros instrumentos, a fim de ir adiante. Para mostrá-lo,
eis como procedo.
[33] A ideia
verdadeira (pois temos uma ideia verdadeira) é algo diverso do seu ideado,
porque uma coisa é o círculo, outra, a ideia do círculo. A ideia do círculo, de
fato, não é uma coisa que tem periferia e centro, como o círculo, nem a ideia
do corpo é o próprio corpo: e como é algo diverso de seu ideado, será também
alguma coisa inteligível por si; isto é, a ideia, quanto à sua essência
formal, pode ser objeto de outra essência objetiva, e de novo esta
outra essência objetiva será também, vista em si, algo de real e inteligível, e
assim indefinidamente.
[34] Pedro, por
exemplo, é algo real; a verdadeira ideia de Pedro, porém, é sua essência
objetiva e, em si, alguma coisa real e totalmente diversa do próprio Pedro.
Como, pois, a ideia de Pedro é uma coisa real, com sua essência peculiar, será
também algo inteligível, isto é, objeto de outra ideia, a qual terá em si
objetivamente tudo o que a ideia de Pedro tem formalmente, e, outra vez, a
ideia que e da ideia de Pedro tem, da mesma forma, a sua essência, que também
pode ser objeto de outra ideia, e assim indefinidamente. O que qualquer um pode
experimentar ao ver que sabe o que é Pedro e também sabe que sabe e, de novo,
sabe que sabe que sabe, etc. Daí se verifica que para inteligir a essência de
Pedro não é preciso inteligir a própria ideia de Pedro, e muito menos a ideia
da ideia de Pedro, o que equivale a dizer que não é necessário, para que eu
saiba, que saiba que sei, e muito menos ser necessário que saiba que sei que
sei, igualmente como para inteligir a essência do triângulo não é preciso
inteligir a essência do círculo. Mas o contrário se passa com estas ideias,
porque, para saber que sei, necessariamente devo antes saber.
[35] Daí se vê
que a certeza nada mais é que a própria essência objetiva, a saber, o
modo como sentimos a essência formal é a própria certeza. Donde se segue, de
novo, que para a certeza da verdade não precisamos de nenhum outro sinal senão
ter uma ideia verdadeira. Pois, como mostramos, não é necessário, para que eu
saiba, que saiba que sei. Do que resulta, mais uma vez, que ninguém pode saber
o que é a suma certeza, a não ser aquele que possui uma ideia adequada ou
essência objetiva de alguma coisa, porque, de fato, o mesmo é a certeza e a
essência objetiva.
[36] Como, pois,
a verdade não necessita de nenhum sinal, mas basta ter as essências objetivas
das coisas, ou, o que dá na mesma, as ideias, a fim de que se tire toda a
dúvida, daí se segue que não é o verdadeiro método procurar o sinal da verdade
depois de adquirir as ideias, mas que o verdadeiro método é o caminho para que
a própria verdade ou as essências objetivas das coisas ou as ideias (tudo isso
quer dizer o mesmo) sejam procuradas na devida ordem.
[37] Ainda uma
vez, o método necessariamente deve falar de raciocínio ou de intelecção, ou
seja, o método não é o próprio raciocinar para inteligir as causas das coisas e
muito menos é o inteligir as causas das coisas, mas é o inteligir o que é a
ideia verdadeira, distinguindo-a das outras percepções e investigando a
natureza dela, para daí conhecer a nossa potência de inteligir e coibir nossa
mente de tal modo que, segundo essa norma, entenda tudo o que deve ser
entendido, dando, como meios auxiliares, regras certas e também fazendo com que
a mente não se canse com inutilidades.
[38] Daí se deduz
que o método nada mais é que o conhecimento reflexivo ou a ideia da ideia;
e porque não existe a ideia da ideia, a não ser que exista uma ideia, logo o
método não existirá se não houver antes uma ideia. Donde será bom o método que
mostre como a mente se deve dirigir segundo a norma de uma existente ideia
verdadeira. Além disso, visto que há entre duas ideias a mesma razão existente
entre as essências formais daquelas ideias, segue-se que o conhecimento
reflexivo da ideia do Ser perfeitíssimo será melhor que o conhecimento
reflexivo das outras ideias; isto é, será perfeitíssimo o método que mostre
como a mente deve ser dirigida pela norma da ideia existente do Ser
perfeitíssimo.
[39] Disso
facilmente se intelige como a mente, entendendo mais coisas, adquire ao mesmo
tempo outros instrumentos, com os quais continua com maior facilidade a
inteligir. Com efeito, ao que se infere do que ficou dito, deve existir antes
de tudo em nós, como instrumento inato, uma ideia verdadeira, entendida, a qual
compreende-se simultaneamente a diferença que existe entre essa percepção e
todas as outras. Nisso consiste uma parte do método. E como é claro por si que
a mente tanto melhor se entende quanto mais entender da Natureza, vê-se que
esta parte do método será tanto mais perfeita quanto mais coisas a mente
entender, e será perfeitíssima quando a mente atender ao conhecimento do Ser
perfeitíssimo, ou refletir sobre o mesmo conhecimento.
[40] Além disso,
quanto mais coisas a mente conhece, tanto melhor intelige as suas forças e a
ordem da Natureza; quanto melhor, porém, entende as suas forças, mais
facilmente pode dirigir-se e propor regras a si mesma; e quanto melhor intelige
a ordem da Natureza, mais facilmente pode abster-se das coisas inúteis. E
nisso, como dissemos, consiste todo o método.
[41] Acrescente-se
que a ideia se apresenta objetivamente do mesmo modo que se apresenta realmente
seu ideado. Portanto, se houvesse na Natureza alguma coisa que não tivesse
nenhuma comunicação com as outras, e se dela também existisse uma essência
objetiva, a qual deveria convir totalmente com a formal, também não teria
comunicação com as outras ideias, isto é, nada poderíamos concluir sobre ela;
ao contrário, as coisas que têm comunicação com o resto, como é tudo o que
existe na Natureza, serão entendidas, e igualmente suas essências objetivas
terão a mesma comunicação, ou seja, delas serão deduzidas outras ideias, as
quais, de novo, terão comunicação com as outras, e assim crescerão os
instrumentos para prosseguir. O que nos esforçávamos por demonstrar.
[42] Ademais,
pelo que dissemos no fim, a saber, que a ideia deve convir inteiramente com sua
essência formal, vê-se outra vez que, para que a nossa mente relate
perfeitamente a imagem da Natureza, deve produzir todas as suas ideias a partir
daquela que representa a origem e fonte de toda a Natureza, a fim de que ela
também seja a fonte das outras ideias.
[43] Aqui talvez se admire alguém de que, quando
dissemos que é um bom método aquele que mostra como se deve dirigir a mente
pela norma de uma existente ideia verdadeira, o hajamos provado raciocinando, o
que parece evidenciar que isso não é conhecido por si. E por isso se pode
perguntar se raciocinamos bem. Nesse caso, devemos começar pela ideia
existente, e, como é necessária uma demonstração para começar pela ideia
existente, deveríamos, de novo, provar o nosso raciocínio, e outra vez
demonstrar este outro, e assim ao infinito.
[44] Mas a isso
respondo que se alguém por algum acaso procedesse assim ao investigar a
Natureza, a saber, adquirindo, conforme a norma da existente ideia verdadeira,
outras ideias na ordem devida, nunca duvidaria da sua verdade, porque a
verdade, como mostramos, se revela a si mesma e porque também espontaneamente
todas as coisas lhe adviriam. Mas porque isso nunca ou raramente acontece, fui
obrigado a pô-lo assim, de modo que aquilo que não podemos adquirir por acaso
façamo-lo contudo por um desígnio premeditado e, ao mesmo tempo, a fim de que
aparecesse que nós, para provar a verdade e o bom raciocínio, não necessitamos
de outros instrumentos senão a própria verdade e o bom raciocínio. Pois provei
o bom raciocínio raciocinando, e ainda me esforço por comprová-lo.
[45] Acresce que
também desse modo a gente se acostuma a suas meditações internas. A razão,
porém, por que raramente acontece que, na investigação da Natureza, se proceda
na devida ordem, é baseada nos preconceitos, cujas causas explicaremos depois
na nossa filosofia. A seguir, por ser necessária uma grande e cuidadosa
distinção, como mostraremos depois, o que é muito custoso. Por último, devido
ao estado das coisas humanas, que, como ficou demonstrado, é inteiramente
mutável. Existem ainda outras razões, de que não cuidamos.
[46] Se alguém
por acaso perguntar qual a razão por que logo, antes de tudo, mostrei as
verdades da Natureza nesta ordem, pois a verdade se patenteia por si,
respondo-lhe e ao mesmo tempo previno-o de que não queira rejeitar tudo como
falso por causa dos paradoxos que talvez ocorram frequentemente, mas antes se
digne considerar a ordem em que o provamos, para então ter a certeza de que
conseguimos a verdade, e tal foi o motivo desta observação prévia.
[47] Se depois
disso algum cético talvez permaneça ainda em dúvida quanto à própria verdade
primeira ou a respeito de tudo o que deduzimos segundo a norma dessa verdade
primeira, ou ele, com efeito, falará contra a consciência, ou confessaremos que
existem homens totalmente obcecados até na alma, por nascimento ou por causa
dos preconceitos, isto é, por alguma ocorrência exterior. De fato, nem a si
mesmos sentem; se afirmam algo ou duvidam, não sabem que duvidam ou afirmam:
dizem que nada sabem, e mesmo isso, ou seja, que nada sabem, dizem que ignoram;
nem o dizem absolutamente, pois temem confessar que existem enquanto nada
sabem, de modo que afinal devem calar-se para não supor alguma coisa que cheire
a verdade.
[48] Por último,
não se há de falar com eles sobre as ciências, porque, no que se refere ao uso
da vida e da sociedade, a necessidade obrigou-os a supor que existem, a
procurar a sua utilidade e a afirmar ou negar muitas coisas com juramento. Com
efeito, se algo lhes é provado, não sabem se o argumento prova ou falha. Se
negam, se concedem ou se opõem, não sabem que negam, concedem ou opõem, pelo
que devem ser tidos como autômatos, que carecem por completo de espírito.
[49] Resumamos
agora o nosso intento. Até aqui, tivemos em primeiro lugar o fim para o qual
procuramos dirigir todos os nossos pensamentos. Conhecemos, em segundo lugar,
qual é a melhor percepção, com cujo auxílio podemos atingir a nossa perfeição.
Vimos, em terceiro lugar, o primeiro caminho no qual a mente deve insistir para
começar bem, que vem a ser: continuar conforme a norma de alguma existente
ideia verdadeira a investigar segundo leis certas. Para fazê-lo bem, o método
deve fornecer o seguinte: primeiramente, distinguir a verdadeira ideia de todas
as outras percepções, coibindo a mente para que não se ocupe com estas. Em
segundo lugar, dar as regras para que percebamos segundo tal norma as coisas
desconhecidas. Em terceiro lugar, estabelecer uma ordem a fim de não nos
cansarmos com inutilidades. Depois que conhecemos esse método, vimos em quarto
lugar que ele será perfeitíssimo quando tivermos a ideia do Ser perfeitíssimo.
Portanto, desde o começo se observará principalmente que devemos chegar o mais cedo
possível ao conhecimento desse Ser.
[50] Comecemos,
pois, pela primeira parte do método, que é, como dissemos, distinguir e separar
das outras percepções a ideia verdadeira e coibir a mente para que não confunda
com as verdadeiras as falsas, as fictícias e as duvidosas: o que tenciono
explicar aqui profusamente a fim de reter os leitores no pensamento de uma
coisa tão necessária, e também porque há muitos que duvidam até da verdade por
não haverem prestado atenção à distinção existente entre a percepção verdadeira
e todas as outras. De modo que são como homens que, acordados, não duvidam de
que vigiam, mas depois que em sonhos, como muitas vezes acontece, acharam que
estavam certamente acordados, o que depois verificaram ser falso, duvidaram até
de sua vigília, o que sucede porque nunca distinguiram entre o sono e a
vigília.
[51] Aviso,
entretanto, que aqui não explicarei a essência de cada percepção, nem sua causa
próxima, porque isso pertence à filosofia, mas exporei apenas o que o método
postula, isto é, sobre o que versam a percepção fictícia, a falsa e a duvidosa
e como nos libertaremos de cada uma. Seja, por conseguinte, a primeira
investigação sobre a ideia fictícia.
[52] Visto que
toda percepção ou é de uma coisa considerada como existente ou somente da
essência, e já que são mais frequentes as ficções a respeito das coisas
consideradas como existentes, falo antes destas, a saber, quando se finge só a
existência, e a coisa que se finge em tal ato é inteligida ou se supõe
inteligida. Por exemplo, finjo que Pedro, a quem conheço, vai para casa, me
visita e coisas semelhantes. Aqui pergunto, sobre que versa essa ideia? Vejo
que versa apenas sobre coisas possíveis, mas não acerca de necessárias nem de
impossíveis.
[53] Chamo coisa
impossível aquela cuja natureza é contraditória com a existência; necessária
aquela cuja natureza é contraditória com a não existência; possível aquela cuja
existência por sua natureza não é contraditória com a existência ou não
existência, mas cuja necessidade ou impossibilidade de existir depende de
causas ignoradas por nós, enquanto fingimos sua existência; e por isso, se sua
necessidade ou impossibilidade, que depende de causas exteriores, fosse
conhecida por nós, nada poderíamos fingir também sobre elas.
[54] Donde se segue que, na hipótese de haver algum Deus ou
ser onisciente, nada absolutamente poderá fingir. De fato, no que nos concerne,
depois que soube que existo, não posso fingir que existo ou não existo, nem
tampouco posso fingir um elefante que passe pelo buraco de uma agulha, nem
posso, depois que soube a natureza de Deus, fingir que existe ou não existe; o
mesmo se deve entender a respeito da quimera, cuja natureza é contraditória com
a existência. Do que se evidencia o que eu disse, a saber, que a ficção de que
aqui falamos não acontece acerca das verdades eternas.
[55] Mas, antes de prosseguirmos, note-se aqui, de passagem,
que a diferença que há entre a essência de uma coisa e a de outra vigora também
entre a atualidade ou existênciada mesma e a de outra. De modo que, se
quisermos, por exemplo, conceber a existência de Adão somente pela existência
geral, será o mesmo que, se para conceber sua essência, olharmos para a
natureza do ser no intuito de, enfim, definirmos que Adão é um ser. Logo,
quanto mais geralmente se concebe a existência, tanto mais confusamente é ela
concebida e mais facilmente pode ser atribuída a qualquer coisa; ao contrário,
quanto mais particularmente se concebe, mais claramente é entendida e mais
dificilmente se atribui a outra coisa que não a própria, desde que não levamos
em conta a ordem da Natureza. O que é digno de ser notado.
[56] Vem já aqui a consideração do que vulgarmente se diz
“fingir”, ainda que se entenda com clareza que a coisa não se comporta como a
fingimos. Por exemplo, embora eu saiba que a terra é redonda, nada entretanto
proíbe que diga a alguém ser a terra a metade de um globo e como que uma meia
laranja num pires, ou que o sol gira ao redor da terra e coisas semelhantes. Se
prestarmos atenção a isso, não veremos nada que não condiga com o que já
dissemos, desde que primeiro vejamos que outrora pudemos errar e estar agora
cônscios de nossos erros; a seguir, que podemos fingir ou pelo menos julgar que
outros homens podem estar no mesmo erro ou cair naquele em que estávamos antes.
Isso, digo, podemos fingir enquanto não vemos nenhuma impossibilidade e nenhuma
necessidade; quando, pois, digo a alguém que a terra não é redonda, etc., nada
mais faço do que relembrar o erro em que talvez estive ou em que pude cair, e
depois finjo ou julgo que aquele a quem falo isso pode ainda estar ou cair no
mesmo erro. O que finjo, como disse, enquanto não vejo nenhuma impossibilidade
e nenhuma necessidade, porque, se as entendesse, não poderia de modo algum
fingir, e só restaria dizer que fiz alguma coisa.
[57] Resta agora notar também aquelas coisas
que se supõem nas questões, as quais se referem frequentemente a impossíveis.
Por exemplo, quando dizemos: suponhamos que esta vela que está ardendo não
arde, ou suponhamos que ela queima em algum espaço imaginário, a saber, em que
não há corpo algum. Coisas parecidas se supõem amiúde, ainda que se entenda
claramente que esta última suposição é impossível; mas quando isto acontece,
não se finge absolutamente nada. Com efeito, no primeiro caso, nada mais fiz do
que lembrar outra vela que não arde (ou conceber esta mesma sem a chama), e o
que penso de uma é o mesmo que entendo da outra, enquanto não cuido da chama.
No segundo caso, nada mais se faz que abstrair as ideias dos corpos adjacentes,
para que a mente se volva unicamente à contemplação da vela vista em si só, e
depois conclua que a vela não contém nenhuma causa para a destruição de si
mesma. De modo que, se não houvesse corpos circunjacentes, essa vela, bem como
sua chama, ficaria imutável; ou coisas semelhantes: não existe, pois, nenhuma
ficção, mas verdadeiras e meras asserções.
[58] Passemos então às ficções que versam sobre as essências
sozinhas ou juntamente com alguma atualidade ou existência. A respeito do que
devemos considerar sobretudo o seguinte: quanto menos a mente intelige, mas
percebe mais coisas, mais tem o poder de fingir, e quanto mais coisas intelige,
mais diminui aquela potência. Do mesmo modo, por exemplo, que, como vimos
acima, não podemos fingir, enquanto pensamos, que pensamos e não pensamos,
assim também, desde que conhecemos a natureza do corpo, não podemos fingir uma
mosca infinita; ou desde que conhecemos a natureza da alma, não podemos fingir
que é quadrada, ainda que possamos dizer tudo isso com palavras. Mas, como
dissemos, quanto menos os homens conhecem a Natureza, mais facilmente podem
fingir muita coisa, como sejam, as árvores falarem, os homens se transformarem
num instante em pedras ou fontes, aparecerem espectros nos espelhos, o nada
fazer-se algo, os próprios deuses mudarem em animais e homens, e infinitas
coisas desse gênero.
[59] Alguém talvez pensará que é a ficção e não a inteligência
que termina a ficção; isto é, depois que fingi algo e quis, com certa
liberdade, admitir que isso existe assim na natureza das coisas, acontece que a
seguir não podemos pensá-lo de outro modo. Por exemplo, depois que fingi (para
falar com eles) tal natureza do corpo e quis persuadir-me, com minha liberdade,
que ela existe assim realmente, não poderei mais fingir, digamos, uma mosca
infinita, e, depois que fingi a essência da alma, não posso torná-la quadrada,
etc.
[60] Mas isso deve ser examinado. Primeiramente, ou negam ou
concedem que podemos inteligir alguma coisa. Se concedem, necessariamente devem
dizer da intelecção o mesmo que dizem da ficção. Se, porém, o negam, vejamos
nós, que sabemos que conhecemos algo, o que dizem. Ora, dizem o seguinte: que a
alma pode sentir e perceber de muitas maneiras, não a si própria nem as coisas
que existem, mas unicamente aquelas que não existem nem em si nem em parte
alguma, o que quer dizer que a alma pode só por sua força criar sensações ou
ideias que não são das coisas, de modo que, em parte, a consideram como Deus.
Além disso, dizem que nós temos (ou nossa alma tem) tal liberdade que nos
obrigue (ou a ela, inclusive a sua própria liberdade). Pois, desde que a alma
fingiu algo e lhe deu seu assentimento, não pode pensar ou fingir isso de outro
modo, e também é obrigada por essa ficção a pensar as outras coisas de tal modo
que não contrariem a primeira ficção, como também são obrigados a admitir por
causa de sua ficção os absurdos que aqui enumero. Para a refutação disso, não
nos cansaremos com outras demonstrações.
[61] Mas, deixando-os em seus delírios, cuidaremos de tirar
das palavras que com eles trocamos alguma verdade para o nosso assunto: a
mente, ao aplicar-se a uma coisa fingida e falsa por sua natureza, a fim de que
a pense e entenda e dela deduza em boa ordem aquilo que deve ser deduzido,
facilmente evidenciará a sua falsidade; e se a coisa fingida é verdadeira por
sua natureza, quando a mente olha para ela com atenção no intuito de a
entender, e começa a deduzir dela em boa ordem o que dela se segue, continuará
felizmente sem nenhuma interrupção, como vimos que, da falsa ficção que
acabamos de referir, logo o intelecto mostrou sua absurdidade e outras coisas
daí deduzidas.
[62] Portanto, de nenhum modo se deve temer que finjamos algo,
desde que percebamos uma coisa clara e distintamente; pois se por acaso falamos
que os homens, num momento, se transformam em animais brutos, isto se diz de um
modo muito geral, de forma que não há nenhum conceito, isto é, ideia ou
coerência de sujeito e predicado na mente, dado que, se houvera, ver-se-ia logo
o meio pelo qual e as causas por que tal coisa se fez. Ademais, não se presta
atenção à natureza do sujeito e do predicado.
[63] Além disso, não sendo fingida a primeira ideia e
deduzindo-se dela todas as outras, desvanece-se pouco a pouco a precipitação de
fingir; a seguir, não podendo a ideia fingida ser clara e distinta, mas somente
confusa, e como toda confusão procede de que a mente conhece só em parte a
coisa íntegra ou composta de muitas, não distinguindo o conhecido do
desconhecido, além de que olha conjuntamente e sem nenhuma distinção para os
múltiplos elementos contidos em cada coisa; daí se segue, primeiro, que, tratando-se
da ideia de algo simplicíssimo, ela não deixará de ser senão clara e
distinta, pois essa coisa não pode aparecer-nos em parte, mas só ou toda ou
nada.
[64] Segue-se, em segundo lugar, que, se a coisa composta de
muitos elementos for dividida pelo pensamento em todas as suas partes mais
simples e se se prestar atenção a cada uma por si, desaparecerá então toda
confusão. Em terceiro lugar, segue-se que a ficção não pode ser simples, mas
sim feita da composição de diversas ideias confusas, que são de diversas coisas
e ações existentes na Natureza, ou melhor, provêm da atenção simultânea, mas
sem assentimento, a tais ideias diversas; pois, se fosse simples, seria clara e
distinta e, por conseguinte, verdadeira. Se resultasse da composição de ideias
distintas, sua composição seria também clara e distinta e, portanto,
verdadeira. Por exemplo, depois que conhecemos a natureza do círculo e também a
do quadrado, não podemos mais compor essas duas coisas e falar de um círculo
quadrado, ou alma quadrada e coisas semelhantes.
[65] Concluamos, de novo, brevemente e vejamos como não se
deve de modo algum temer a ficção, confundindo-a com as ideias verdadeiras. Com
efeito, quanto à primeira de que falamos antes, a saber, quando a coisa é
concebida claramente, vimos que se essa coisa concebida claramente e também sua
existência for por si uma verdade eterna, nada poderemos fingir acerca disso;
mas, se a existência da coisa concebida não for uma verdade eterna, dependendo
de causas exteriores a necessidade ou impossibilidade de existir, então retoma
do mesmo modo tudo o que dissemos quando se tratou da ficção, pois se corrige
de igual maneira.
[66] Entendidas assim essas coisas, passemos agora à pesquisa
da ideia falsa, para ver a respeito de que versa e como podemos
precaver-nos de cair em falsas percepções. Ambas as coisas já não nos serão
difíceis, depois do estudo da ideia fingida: pois entre elas não há nenhuma
diferença senão que aquela supõe o assentimento, isto é, como já notamos, que
nenhuma causa se oferece, enquanto se lhe deparam as representações, pela qual,
como o que finge, possa inferir que elas não vêm das coisas de fora, o que quase
nada mais é do que sonhar de olhos abertos ou em estado de vigília. Trata,
portanto, a ideia falsa de, ou (para dizer melhor) se refere, à existência da
coisa cuja essência é conhecida, ou à essência, do mesmo modo que a ideia
fingida.
[67] Corrige-se a que diz respeito à existência do mesmo modo
que a ficção, pois, se a natureza da coisa conhecida supõe a existência
necessária, é impossível que nos enganemos no referente à sua existência; mas
se a existência da coisa não for uma verdade eterna, como é sua essência,
dependendo de causas exteriores a necessidade ou impossibilidade de existir,
então retoma do mesmo modo tudo o que dissemos quando se tratou da ficção, pois
se corrige de igual maneira.
[68] No que diz respeito à outra [espécie de erro], que se
refere às essências ou também às ações, tais percepções são sempre
necessariamente confusas, compostas de diversas percepções confusas das coisas
existentes na Natureza, como quando se convencem os homens de que há deuses nas
florestas, nas imagens, nos animais brutos e noutras coisas; que há corpos de
cuja composição se faz simplesmente o intelecto; que cadáveres raciocinam,
andam e falam; que Deus se engana, e outras coisas semelhantes. Mas as ideias
que são claras e distintas nunca podem ser falsas, pois as ideias das
coisas que se concebem clara e distintamente ou são simplicíssimas ou compostas
delas, isto é, deduzidas das ideias simplicíssimas. Que, porém, a ideia
simplicíssima não pode ser falsa, qualquer um verá, contanto que saiba o que é
a verdade, ou o intelecto, e ao mesmo tempo o que é a falsidade.
[69] Com efeito, quanto ao que constitui a forma da verdade, é
certo que o pensamento verdadeiro se distingue do falso não apenas por
uma denominação extrínseca, mas principalmente por uma intrínseca. Realmente,
se algum artífice concebeu em ordem uma construção, ainda que essa construção
nunca tenha existido nem venha a existir jamais, seu pensamento, entretanto, é
verdadeiro e é o mesmo, quer a construção exista, quer não. E, ao contrário, se
alguém disser que Pedro, por exemplo, existe, mas ignorando que exista, seu
pensamento é falso a respeito de Pedro, ou, se preferes, não é verdadeiro,
ainda que Pedro exista de fato. Nem este enunciado, que Pedro existe, é
verdadeiro, a não ser em relação àquele que conhece com certeza a existência de
Pedro.
[70] Daí se segue que há nas ideias algo de real pelo que se
distinguem das falsas as verdadeiras, o que, pois, nos resta agora investigar a
fim de ter a melhor norma da verdade (pois dissemos que devemos determinar
nossos pensamentos segundo a norma dada pela ideia verdadeira, e que o método é
o conhecimento reflexivo) e conhecer as propriedades do intelecto; nem se diga
que essa diferença nasce de que o conhecimento verdadeiro consiste em conhecer
as coisas por suas causas primeiras, no que de fato diferiria muito da falsa,
como a expliquei acima: pois se diz conhecimento verdadeiro também aquele que
envolve objetivamente a essência de algum princípio que não tem causa,
conhecendo-se por si e em si.
[71] Portanto, a forma do conhecimento verdadeiro deve
achar-se no próprio conhecimento, sem relação com outros (conhecimentos), nem
conhece o objeto como causa, mas deve depender do próprio poder e natureza do
intelecto. Com efeito, se supusermos que o intelecto percebe algum ente novo,
que nunca existiu, como alguns concebem o intelecto de Deus antes de criar as
coisas (percepção que, por certo, não poderia provir de nenhum objeto),
deduzindo legitimamente de tal percepção outras, todos esses conhecimentos
seriam verdadeiros e não determinados por nenhum objeto exterior, mas
dependeriam só do poder e natureza do intelecto. Portanto, o que constitui a
forma do conhecimento verdadeiro há de procurar-se no próprio conhecimento e
deduzir-se da natureza do intelecto.
[72] Ora, para que se investigue isso, ponhamos ante os olhos
alguma ideia verdadeira cujo objeto sabemos com toda certeza que depende
da força de nosso pensamento, não tendo nenhum objeto na Natureza, visto que
numa ideia assim, como já dissemos, mais facilmente poderemos investigar o que
queremos. Por exemplo, para formar o conceito de globo, finjo arbitrariamente
uma causa, a saber, o semicírculo que gira ao redor do centro, e dessa rotação
como que nasce o globo. Realmente, essa ideia é verdadeira, e, ainda que
saibamos jamais ter assim surgido um globo na Natureza, esta percepção é,
contudo, verdadeira e o modo mais fácil de formar o conceito de globo. Note-se
aqui que essa percepção afirma a rotação do semicírculo, afirmação que seria
falsa se não se juntasse com o conceito de globo ou da causa que determina tal
movimento, isto é, (seria falsa) separadamente, se essa afirmação fosse
isolada. De fato, então a mente tenderia apenas a afirmar o movimento do
semicírculo, o que nem estaria contido no conceito de semicírculo, nem nasceria
do conceito da causa que determina o movimento. Por isso, a falsidade só
consiste em afirmarmos algo de alguma coisa não contido no conceito que
formamos da mesma, como o movimento ou a imobilidade no semicírculo. Daí se segue
que os simples pensamentos não podem deixar de ser verdadeiros, como a
simples ideia de semicírculo, de movimento, de quantidade, etc. Tudo o que
estas contêm de afirmação iguala-se ao conceito delas, nem se estende além,
pelo que nos é permitido à vontade, sem nenhum perigo de errar, formar ideias
simples.
[73] Resta, portanto, apenas investigar por que poder a nossa
mente as pode formar e até onde se estende esse poder, pois que, achado isso,
facilmente veremos o maior conhecimento a que podemos chegar. É certo, contudo,
que este seu poder não se estende ao infinito, já que, quando afirmamos de
alguma coisa algo que não está contido no conceito que dela formamos, isso
indica um defeito de nossa percepção, ou seja, que temos pensamentos ou ideias
como que mutiladas e truncadas. Verificamos, com efeito, que o movimento do
semicírculo é falso desde que se encontra isolado na mente, mas é verdadeiro se
se junta ao conceito de globo ou ao conceito de alguma causa que determina esse
movimento. De modo que, se é da natureza do ser pensante, como parece logo à
primeira vista, formar pensamentos verdadeiros, ou adequados, é certo que as ideias
inadequadas nascem em nós apenas enquanto somos parte de um ser pensante,
do qual alguns pensamentos constituem ao todo a nossa mente, outros só em
parte.
Da Ficção, Falsidade e Dúvida
[74] Mas o que devemos ainda considerar (não tendo valido a
pena anotar acerca da ficção) e onde existe o maior engano é quando acontece
que algumas coisas que se oferecem na imaginação estejam também no intelecto,
isto é, sejam concebidas clara e distintamente; então, enquanto não se separa
do confuso o distinto, a certeza, ou seja, a ideia verdadeira se mistura com as
não distintas. Por exemplo, alguns estoicos por acaso ouviram o nome da alma e
também que é imortal, as quais coisas imaginavam apenas confusamente;
imaginavam também e ao mesmo tempo inteligiam que os corpos sutilíssimos
penetravam todos os mais e por nenhum outro eram penetrados. Como imaginassem
tudo isso junto, acompanhado da certeza deste axioma, logo se convenciam de que
a mente é esses corpos sutilíssimos e aqueles corpos sutilíssimos não se
dividem, etc.
[75] Também disso, porém, nos livramos,
enquanto nos esforçamos por examinar todas as nossas percepções conforme a
norma de uma existente ideia verdadeira, precavendo-nos, como dissemos no
começo, do que temos pelo ouvido ou pela experiência vaga. Acresce que tal
engano provém de que concebem as coisas de um modo excessivamente abstrato,
pois é bastante claro por si que aquilo que concebo em seu verdadeiro objeto
não posso aplicar a outra coisa. Nasce, por último, também de que não inteligem
os primeiros elementos de toda a Natureza; donde, procedendo sem ordem e
confundindo a Natureza com as coisas abstratas, embora sejam verdadeiros
axiomas, a si mesmos se confundem e pervertem a ordem da Natureza. Nós,
contudo, se procedermos o menos abstratamente possível e começarmos, logo que
possamos, pelos primeiros elementos, isto é, pela fonte e origem da Natureza,
de nenhum modo devemos temer esse engano.
[76] Realmente, no que respeita ao conhecimento da origem
da Natureza, não se há de temer de modo algum que a confundamos com
abstrações, pois, quando se concebe algo abstratamente, como são todos os
universais, estes sempre se compreendem mais largamente no intelecto do que
podem existir suas coisas particulares de fato na Natureza. A seguir, como na
Natureza há muitas coisas cuja diferença é tão pequena que quase escapa à
inteligência, então facilmente (se concebidas abstratamente) pode acontecer que
se confundam; mas como a origem da Natureza, ao que veremos depois, não pode
ser concebida abstratamente, ou seja, universalmente, nem se pode estender mais
longe no intelecto do que é de fato, nem tem semelhança alguma com as coisas
mutáveis, não se temerá nenhuma confusão a respeito de sua ideia, contanto
tenhamos a norma da verdade (como já mostramos); realmente, este ser é único,
infinito, quer dizer, todo o ser, e fora dele não há ser algum.
[77] Até aqui sobre a ideia falsa. Resta inquirir a respeito
da ideia duvidosa, isto é, sobre aquelas coisas que podem levar-nos à
dúvida, e ao mesmo tempo como ela se desfaz. Falo da verdadeira dúvida na mente
e não da que vemos ocorrer com frequência, a saber, daquela na qual alguém,
ainda que não duvide interiormente, diz com palavras que duvida; com efeito,
não pertence ao método corrigir isto, mas antes faz parte da investigação da
teimosia e sua correção.
[78] Ora, não há na alma nenhuma dúvida pela própria coisa de
que se duvida, o que quer dizer que, se existir só uma ideia na alma, quer seja
verdadeira, quer falsa, não haverá dúvida, nem tampouco certeza, mas somente
tal sensação, pois em si, de fato, (a ideia) não é outra coisa senão uma
sensação; mas (a dúvida) existirá por outra ideia que não é tão clara e
distinta que possamos dela concluir algo de certo acerca do que se duvida, isto
é, a ideia que nos lança na dúvida não é clara e distinta. Por exemplo, se
alguém nunca pensou nos erros dos sentidos, seja pela experiência, seja de
outro modo qualquer, jamais duvidará se o sol é maior ou menor do que aparece.
Por isso os rústicos se admiram frequentemente ao ouvir que o sol é maior que o
globo terrestre, mas a dúvida nasce pensando-se nos erros dos sentidos, isto é,
a pessoa sabe que os sentidos às vezes se enganam, mas isso o sabe apenas
confusamente, pois ignora como os sentidos erram; e se alguém, depois da
dúvida, adquirir o verdadeiro conhecimento dos sentidos, e como por meio deles
as coisas são representadas ao longe, tira-se de novo a dúvida.
[79] Donde se segue que não podemos pôr em dúvida as ideias
verdadeiras pelo fato de que talvez exista algum Deus enganador, que nos
faz errar mesmo nas coisas mais certas, a não ser enquanto não temos nenhuma
ideia clara e distinta de Deus, ou seja, fica a dúvida, se olharmos para o
conhecimento que temos da origem de todas as coisas e nada acharmos que nos
diga não ser ele (Deus) enganador, com o mesmo conhecimento com que, vendo a
natureza do triângulo, verificamos que seus três ângulos são iguais a dois
retos; mas, se de Deus possuímos um conhecimento como o que temos do triângulo,
tira-se então toda a dúvida. E do mesmo modo que podemos chegar a esse
conhecimento do triângulo mesmo sem saber com certeza se algum supremo
enganador não nos leva ao erro, assim também podemos alcançar esse conhecimento
de Deus, embora não saibamos com certeza se há ou não algum supremo enganador;
e, contanto que o tenhamos, basta para suprimir, como disse, toda dúvida que
podemos nutrir acerca das ideias claras e distintas.
[80] Além disso, se alguém proceder corretamente, investigando
o que se deve investigar primeiro, não interrompendo jamais a concatenação das
coisas, e souber como se devem determinar as questões antes de se chegar a seu
conhecimento, nunca terá senão ideias certíssimas, isto é, claras e distintas,
pois a dúvida nada mais é que a suspensão da alma no atinente a alguma
afirmação ou negação, que afirmaria ou negaria se não ocorresse algo que,
desconhecido, deixa imperfeito o conhecimento dessa coisa. Donde se vê que a
dúvida sempre nasce do fato de serem as coisas investigadas sem ordem.
A Memória, a Imaginação e a Linguagem
[81] Isto é o que prometi tratar nesta primeira parte do
método. Mas, para não omitir nada do que pode levar ao conhecimento do
intelecto e a suas forças, direi ainda pouca coisa da memória e do esquecimento,
onde ocorre principalmente considerar que a memória é corroborada por meio do
intelecto e também sem o auxílio dele. De fato, em relação ao primeiro ponto,
quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário,
quanto menos, mais facilmente o esquecemos. Por exemplo, se eu transmitir a
alguém uma porção de palavras soltas, muito mais dificilmente as reterá do que
se apresentar as mesmas palavras em forma de narração.
[82] Reforçada também sem auxílio do intelecto, a saber, pela
força mediante a qual a imaginação ou o sentido a que chamam comum é afetado
por alguma coisa singular corpórea. Digo singular, pois a imaginação só é
afetada por coisas singulares. Com efeito, se alguém ler, por exemplo, só uma
novela de amor, retê-la-á muito bem enquanto não ler muitas outras desse
gênero, porque então vigora sozinha na imaginação; mas, se são mais do gênero,
imaginam-se todas juntas e facilmente são confundidas. Digo também corpórea,
pois a imaginação só é afetada por corpos. Como, portanto, a memória é
fortalecida pelo intelecto e também sem ele, conclui-se que é algo diverso do
intelecto e que não há nenhuma memória nem esquecimento a respeito do intelecto
visto em si.
[83] O que será, pois, a memória? Nada mais do que a sensação
das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da
sensação; o que também a reminiscência mostra. Realmente, nesta a alma pensa
nessa sensação, mas não sob uma contínua duração; e assim a ideia desta
sensação não é a própria duração da sensação, quer dizer, a própria memória.
Se, porém, as próprias ideias sofrem alguma corrupção, veremos na filosofia. E
se isso parece a alguém muito absurdo, bastará para o nosso propósito que pense
ser tanto mais facilmente retida uma coisa quanto mais for singular, como se vê
do exemplo da novela que acabamos de dar. Além disso, quanto mais uma coisa é
inteligível, mais facilmente é retida. Logo, não podemos deixar de reter uma
coisa sumamente singular e somente inteligível.
[84] Assim, pois, distinguimos a ideia verdadeira e as outras
percepções, mostrando que as ideias fictícias, as falsas e as outras têm sua
origem na imaginação, isto é, em certas sensações fortuitas e, por assim dizer,
soltas, que não nascem da própria potência da mente, mas de causas exteriores,
conforme o corpo, em sonhos ou acordado, recebe vários movimentos. Ou, se se
preferir, tome-se aqui por imaginação o que se quiser contanto que seja algo
diverso do intelecto e onde a alma seja paciente; tanto faz que tomes o que
quiseres, desde que saibamos que é alguma coisa vaga e da qual a alma sofre,
sabendo ao mesmo tempo como, pelo intelecto, nos livramos dela. Por isso também
ninguém se admire de que ainda não provei existir um corpo e outras coisas
necessárias, e contudo falei da imaginação, do corpo e sua constituição, pois,
como disse, pouco importa o que suponho, contanto que saiba ser algo vago, etc.
[85] Demonstramos, porém, que a ideia verdadeira é
simples ou composta de simples e mostra como e por que algo é ou foi feito.
Demonstramos também que seus efeitos objetivos na alma procedem conforme a
razão da formalidade do próprio objeto; o que é o mesmo que os antigos
disseram, a saber, que a verdadeira ciência procede da causa para os efeitos; a
não ser que nunca, ao que eu saiba, conceberam, como nós aqui, a alma agindo
segundo certas leis e como que um autômato espiritual.
[86] Por conseguinte, quanto era possível no começo,
adquirimos o conhecimento de nosso intelecto e tal norma da ideia verdadeira
que não tememos mais confundir as coisas verdadeiras com as falsas ou as
fictícias. Nem tampouco nos admiraremos de inteligir algumas coisas que de modo
algum caem sob a imaginação, de que outras, totalmente opostas ao intelecto,
estejam na imaginação, ou de que, afinal, haja outras que convêm com o
intelecto. Com efeito, sabemos que as operações pelas quais são produzidas as
imaginações se fazem conforme outras leis, inteiramente diversas das leis do
intelecto, e que a alma se mantém, acerca da imaginação, apenas como paciente.
[87] Pelo que também se vê com que facilidade podem cair em
grandes erros os que não distinguem cuidadosamente a imaginação e a
intelecção. Nestes, por exemplo: que a extensão deve estar em um lugar;
deve ser finita, com partes que se distinguem realmente umas das outras; que é
o primeiro e único fundamento de todas as coisas, e que num tempo ocupa um
maior espaço que noutro, além de muitas outras coisas do mesmo gênero; isso
tudo se opõe à verdade, como mostraremos no devido lugar.
[88] A seguir, como as palavras são parte da
imaginação, isto é, fingimos muitos conceitos na medida em que, vagamente, por
alguma disposição do corpo, são compostos na memória, não se deve duvidar de
que também as palavras, como a imaginação, podem ser a causa de muitos e
grandes erros, se com elas não tivermos muita precaução.
[89] Acrescente-se que são formadas de acordo com o arbítrio e
a compreensão do vulgo, de modo que não são senão sinais das coisas como se
acham na imaginação, mas não como estão no intelecto; o que claramente se vê
pelo fato de que a todas as coisas que estão só no intelecto e não na
imaginação puseram muitas vezes nomes negativos, como sejam, incorpóreo,
infinito, etc., e também muitas coisas que são realmente afirmativas exprimem
negativamente, e vice-versa, como são incriado, independente, infinito, imortal,
etc., porque, sem dúvida, muito mais facilmente imaginamos o contrário disso,
motivo pelo qual ocorreram antes aos primeiros homens e usaram nomes positivos.
Muitas coisas afirmamos e negamos porque a natureza das palavras leva a
afirmá-lo ou negá-lo, mas não a natureza das coisas; por isso, ignorando-a,
facilmente tomaríamos algo falso por verdadeiro.
[90] Evitamos, além disso, outra grande causa de confusão e
que faz com que o intelecto não reflita sobre si mesmo, a saber, quando, não
fazendo distinção entre a imaginação e a intelecção, cremos que aquilo que
imaginamos mais facilmente é também mais claro para nós, e julgamos inteligir o
que imaginamos. Por isso, antepomos o que se deve pospor, e assim se desfaz a
verdadeira ordem do progresso e não se conclui nada legitimamente.
Definições e a Ordem da Natureza
[91] Ademais, para que afinal cheguemos à segunda parte deste
método, proporei primeiro o nosso intuito neste método e a seguir os meios para
atingi-lo. O escopo, pois, é ter ideias claras e distintas, tais, a
saber, que provenham da pura mente e não de movimentos fortuitos do corpo. A
seguir, para que todas as ideias sejam reduzidas a uma, tentaremos ligá-las e
ordená-las de tal modo que nossa mente, quanto possível, reproduza
objetivamente a formalidade da natureza, no todo e em cada uma de suas partes.
[92] Quanto ao primeiro ponto, como já dissemos, exige-se para
o nosso último fim que a coisa seja concebida por sua essência tão somente, ou
por sua causa próxima. A saber, se a coisa é em si, ou, como vulgarmente se
diz, causa de si mesma, deverá ser inteligida só por sua essência; se,
porém, a coisa não é em si, mas exige uma causa para existir, deve ser
inteligida por sua causa próxima. Porque, de fato, o conhecimento do efeito
nada mais é que adquirir um mais perfeito conhecimento da causa.
[93] Logo, nunca poderemos, enquanto tratamos da investigação
das coisas, concluir algo de abstrações, e tomaremos muito cuidado em
não misturar o que está só no intelecto com o que está na coisa. Mas a melhor
conclusão se tirará de alguma essência particular afirmativa, ou seja, de uma
verdadeira e legítima definição. Efetivamente, o intelecto não pode
descer de axiomas só universais a realidades singulares, visto que os axiomas
se estendem a coisas infinitas e não determinam o intelecto para contemplar uma
coisa singular mais do que outra.
[94] Por isso, o reto caminho da invenção é formar os
conhecimentos segundo alguma definição dada, o que se processará tanto mais
feliz e facilmente quanto melhor definirmos alguma coisa. Portanto, o essencial
de toda esta segunda parte do método consiste só nisso, a saber, em conhecer as
condições de uma boa definição e, a seguir, no modo de as encontrar.
Primeiramente, pois, tratarei das condições da definição.
Condições de uma Boa Definição
[95] Uma definição, para que seja dita
perfeita, deverá explicar a essência íntima da coisa, cuidando-se que
não usemos em seu lugar algumas propriedades. A fim de explicá-lo, omitindo
outros exemplos, para não parecer que quero apontar os erros dos outros,
citarei apenas o exemplo de alguma coisa abstrata, que é igual qualquer que
seja a sua definição, a saber, o exemplo do círculo; o qual, se se
define como uma figura cujas linhas traçadas do centro para a circunferência
são iguais, ninguém deixará de ver que tal definição não explica de modo algum
a essência do círculo, mas só uma propriedade sua. E ainda que, como disse,
isto pouco importe quando se trata de figuras e outros seres de Razão, muito
contudo significa no atinente a seres físicos e reais; a saber, porque as
propriedades das coisas não se entendem enquanto se ignoram suas essências,
pois, se deixarmos estas, necessariamente perverteremos a concatenação do
intelecto, que deve reproduzir a concatenação da Natureza, e afastar-nos-emos
totalmente do nosso escopo.
[96] Portanto, para livrar-nos desse erro, devemos observar o
seguinte na definição:
[97] Os requisitos, porém, da definição da coisa
incriada são os seguintes:
Tudo isso são coisas manifestas a quem
prestar bem atenção.
[98] Disse também que a melhor conclusão há de ser tirada de
alguma essência particular afirmativa, pois quanto mais especial for a
ideia, mais distinta será e, portanto, mais clara. Logo, o que acima de tudo
devemos procurar é o conhecimento das coisas particulares.
A Ordem das Coisas e do Conhecimento
[99] Quanto à ordem, porém, e para que todas as nossas
percepções se coordenem e se unam, exige-se que, o mais cedo que se possa fazer
e que a Razão postula, investiguemos se existe algum ser (e ao mesmo tempo qual
é) que seja a causa de todas as coisas, a fim de que sua essência objetiva seja
também a causa de todas as nossas ideias. Aí então nossa mente, como dissemos,
reproduzirá a Natureza no máximo grau possível, pois terá objetivamente tanto
sua essência, como sua ordem e união. Disso podemos ver ser-nos antes de tudo
necessário que sempre deduzamos todas as nossas ideias das coisas físicas,
ou seja, dos seres reais, indo, quanto se pode fazer segundo a série das
causas, de um ser real para outro ser real, de modo a não passarmos a ideias
abstratas e universais, quer não deduzindo delas nada de real, quer não as
concluindo de coisas reais. Ambas as coisas, com efeito, interrompem o
verdadeiro progresso do intelecto.
[100] Note-se, porém, que por série das causas e dos seres
reais não entendo aqui a série das coisas singulares e móveis, mas apenas a
série das coisas fixas e eternas. Realmente, seria impossível para a
fraqueza humana alcançar a série das coisas singulares e mutáveis, tanto devido
à sua quantidade, que ultrapassa todo número, como devido às infinitas
circunstâncias numa e mesma coisa, das quais cada um pode ser a causa de que a
coisa exista ou não exista, já que a existência delas não tem conexão nenhuma
com sua essência, ou (como já dissemos) não é uma verdade eterna.
[101] Efetivamente, também não é necessário que intelijamos a
série delas, visto que as essências das coisas singulares e móveis não devem
ser deduzidas da sua série ou ordem da existência. Com efeito, esta última (a
ordem da existência) não nos dá outra coisa senão denominações extrínsecas,
relações ou, quando muito, circunstâncias, coisas que estão longe de constituir
a essência íntima das coisas. Esta, entretanto, só se há de procurar nas coisas
fixas e eternas e, ao mesmo tempo, nas leis inscritas nessas coisas como em
seus verdadeiros códigos, e segundo as quais são feitas e ordenadas todas as
coisas singulares. De fato, estas coisas singulares e mutáveis dependem tão
íntima e essencialmente (por assim dizer) das coisas fixas que sem elas não
podem existir nem ser concebidas. Portanto, estas coisas fixas e eternas, ainda
que sejam singulares, serão para nós, por sua presença em toda parte e
latíssima potência, como que universais, ou gêneros das definições das coisas
singulares e mutáveis, e causas próximas de todas as coisas.
[102] Mas, sendo isso assim, não pouca dificuldade parece
subsistir para que possamos chegar ao conhecimento destas coisas singulares,
pois conceber todas as coisas juntas supera muito as forças do intelecto
humano. A ordem, porém, para se inteligir um antes do outro não derivará, como
dissemos, da sua série de existir, nem tampouco das coisas eternas. Com efeito,
aí só são todas simultâneas por natureza. Logo, necessariamente hão de ser
procurados outros auxílios além daqueles que usamos para inteligir as coisas
eternas e suas leis; contudo, aqui não é o lugar de expor isso, nem se precisa
fazê-lo senão depois de havermos adquirido um conhecimento suficiente das
coisas eternas e das suas infalíveis leis, e depois que se tenha tornado clara
para nós a natureza de nossos sentidos.
[103] Antes de nos lançarmos ao conhecimento das coisas
singulares, haverá tempo de versar sobre esses auxílios, que tenderão todos a
sabermos fazer uso de nossos sentidos e realizar, segundo certas leis e certa
ordem, experiências suficientes para determinar a coisa que é investigada, a
fim de, por último, concluirmos delas segundo que leis das coisas eternas foi
feita, e conhecermos sua natureza íntima, como mostrarei em seu lugar. Aqui
(para voltar ao que tencionávamos), somente procurarei expor o que parece
necessário a fim de que possamos chegar ao conhecimento das coisas eternas,
formando definições delas nas condições acima expostas.
Poder e Propriedades do Intelecto
[104] Para isso, é preciso relembrar o que dissemos antes, a
saber, que, quando a mente se aplica a algum pensamento a fim de examiná-lo e
deduzir dele em boa ordem o que legitimamente se pode deduzir, se ele for
falso, descobrirá a falsidade, mas, se for verdadeiro, continuará felizmente a
deduzir daí, sem nenhuma interrupção, coisas verdadeiras; isso, digo, é o que
se requer para o nosso intento, pois nossos pensamentos não podem ser
determinados por nenhum outro fundamento.
[105] Se, portanto, desejamos investigar a primeira coisa de
todas, urge haver algum fundamento que dirija para lá nossos pensamentos. A
seguir, sendo o método o próprio conhecimento reflexivo, esse fundamento
que deve dirigir nossos pensamentos não pode ser nenhum outro senão o
conhecimento daquilo que constitui a forma da verdade e o conhecimento do
intelecto, bem como de suas propriedades e forças, porque, adquirido esse,
teremos o fundamento donde deduzir nossos pensamentos, e o caminho pelo qual o
intelecto, quanto sua capacidade o permite, poderá chegar ao conhecimento das
coisas eternas, levando-se em conta, em todo caso, as forças intelectuais.
[106] Ora, se pertence à natureza do pensamento formar ideias
verdadeiras, como se mostrou na primeira parte, cumpre agora inquirir o que
entendemos por forças e potência do intelecto. Como, porém, a parte
principal do nosso método é inteligir otimamente as forças do intelecto e sua
natureza, somos necessariamente obrigados (pelo que expus nesta segunda parte
do método) a deduzir isso da própria definição do pensamento e do intelecto.
[107] Mas até agora não tivemos regra alguma
para descobrir as definições, e como não as podemos dar sem conhecer a natureza
ou definição do intelecto e seu poder, segue-se que ou a definição do intelecto
tem de ser clara por si, ou nada podemos inteligir. Ela, entretanto, não é
absolutamente clara por si; contudo, visto que as propriedades do intelecto
(como tudo o que provém dele) não podem ser percebidas clara e distintamente, a
não ser depois de conhecida a natureza delas, conclui-se que a definição do intelecto
será notória por si, desde que prestemos atenção a suas propriedades
inteligidas por nós clara e distintamente. Enumeremos, pois, aqui as
propriedades do intelecto e reflitamos sobre elas, começando a tratar de nossos
instrumentos inatos.
[108] As propriedades que principalmente notei e que entendo
com clareza são as seguintes:
[109] Nas coisas restantes que se referem ao pensamento, como o
amor, a alegria, etc., não me demoro, porque nem importam ao nosso assunto
presente, nem tampouco podem ser concebidas sem a percepção do intelecto, visto
que, suprimindo-se de todo a percepção, também desaparecem absolutamente.
[110] As ideias falsas e fictícias nada
têm de positivo (como mostramos à saciedade) pelo que sejam ditas falsas ou
fictícias, mas somente são consideradas tais por um defeito do conhecimento.
Logo, as ideias falsas e fictícias, como tais, nada nos podem ensinar sobre a
essência do conhecimento, a qual deve ser procurada nas propriedades positivas
que acabamos de enumerar. Quer dizer que cumpre já estabelecer alguma coisa de
comum, de que necessariamente se seguirão estas propriedades, ou seja que, dado
isso, elas se seguirão necessariamente, e, tirado, todas elas serão suprimidas.
Falta o
resto.......
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